quinta-feira, 5 de maio de 2011

Um regalo da natureza

Dizem que de bolsa de mulher e de cabeça de juiz pode sair qualquer coisa. Então a decisão que o Supremo Tribunal Federal deve dar hoje à ação que pleiteia estender o instituto da união estável aos casais do mesmo sexo continua uma incógnita até o voto do último ministro - mas há razões de sobra para comemorar.

A sessão teve início na tarde de ontem e foi transmitida ao vivo pela internet, com audiência que surpreendeu. Conforme a notícia do evento foi se espalhando via Twitter e via facebook os canais de transmissão foram se multiplicando, e no final do dia até o UOL e o G1 haviam disponibilizado links de transmissão do evento. Quem assistiu se surpreendeu com a maturidade e a profundidade do debate.

Os advogados que falaram pelas instituições que buscam a aprovação das ações fizeram defesas sólidas com base na legislação nacional e internacional e na luta contra o preconceito. Quando chegou a vez de os advogados representantes das instituições contrárias à aprovação da ação (entre elas a Confederação Nacional dos Bispos do Brasil) ocuparem a tribuna, um momento de vergonha alheia: os dois advogados estavam mal preparados, não tinham argumentos, tergiversaram o tempo todo. Um deles começou a falar em crucifixos, Adão e Eva, falou de maconha... uma vergonha imensa transmitida ao vivo. Ponto para nós!

Ao final da noite começou a votação com o Ministro Ayres Brito, relator, dando seu voto. E aí vem outra grande razão para celebrar. O ministro leu seu voto pela aprovação da ação na forma de um documento preparado, de 49 folhas, que é um verdadeiro manifesto pela igualdade de direitos homoafetivos. O documento pode (e deve!!) ser lido na íntegra aqui, e merece ser impresso e emoldurado para ser colocado na parede.

Ayres Brito fala tudo que a igreja não quer ouvir. Que a sexualidade é um prêmio e não um castigo, e que um grupo de pessoas não pode ser punido pelo seu desejo sexual, que não deve ser motivo para vergonha. Nas suas 49 páginas, o texto usa a palavra "sexo" 38 vezes, "preconceito" 17 vezes, "entidade familiar" 12 vezes, e não faz uma única menção sequer a "religião", "bílbia", "Adão", "Eva", ou "Deus". A palavra "deuses" é empregada 2 vezes em sentido geral, como na belíssima passagem "[A sexualiade] corresponde a um ganho, um bônus, um regalo da natureza, e não a uma subtração, um ônus, um peso ou estorvo, menos ainda a uma reprimenda dos deuses em estado de fúria ou de alucinada retaliação perante o gênero humano."

Ao final da página 12 o ministro introduz uma das mais brilhantes definições de preconceito que já li: "Mas é preciso lembrar que o substantivo “preconceito” foi grafado pela nossa Constituição com o sentido prosaico ou dicionarizado que ele porta; ou seja, preconceito é um conceito prévio. Uma formulação conceitual antecipada ou engendrada pela mente humana fechada em si mesma e por isso carente de apoio na realidade. Logo,  juízo de valor não autorizado pela realidade, mas imposto a ela. E imposto a ela, realidade,  a ferro e fogo de u’a mente voluntarista, ou sectária, ou supersticiosa, ou obscurantista, ou industriada, quando não voluntarista, sectária, supersticiosa, obscurantista e industriada ao mesmo tempo. Espécie de trave no olho da razão e até do sentimento, mas coletivizada o bastante para se fazer de traço cultural de toda uma gente ou população geograficamente situada. O que a torna ainda mais perigosa para a harmonia social e a verdade objetiva das coisas."

Ayres Brito termina seu voto com "Pelo que dou ao art. 1.723 do 49 Código Civil interpretação conforme à Constituição para dele excluir qualquer significado que impeça o reconhecimento da união contínua, pública e duradoura entre pessoas do mesmo sexo como “entidade familiar”, entendida esta como sinônimo perfeito de “família”. Reconhecimento que é de ser feito segundo as mesmas regras e com as mesmas conseqüências da união estável heteroafetiva. É como voto."

Logo após o voto do ministro a sessão foi suspensa devido ao adiantado da hora. Recomeça hoje a partir das 14 horas. E, acreditem, vale a pena ver ao vivo este momento histórico. Onde vai ser a comemoração?

12 comentários:

  1. Assisti ontem como se fosse um jogo de futebol, eu torço pela aprovação, mas temos de ficar atentos aos conservadores. Espero que a luz vença a escuridão.

    Abração!

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  2. Papai Urso do Interior5 de maio de 2011 às 10:50

    Só lamento ter perdido tantos amigos que se foram sem usufruir desse momento vindouro, sofreram hostilidade de familiares que após suas mortes 'reapareceram' como parentes valorosos para o espólio dos bens, enquanto o companheiro foi considerado só 'uma aventura escandalosa e vulgar', algo a ser escondido, retaliado e apagado. Aos amigos Heitor, Carlos e Júlio, onde estiverem que possam vibrar como estou vibrando agora, torcer pela correção tardia de anos de injustiça, discriminação e exclusão.

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  3. @Papai Urso do Interior:
    Muito bonito isto que você escreveu.
    **

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  4. Me arrepiei também, com o Papai Urso. Conheci vários casos assim e ainda continuo vendo, infelizmente.

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  5. Luciano, que as boas energias te ouçam. Espero que nenhum ministro do supremo use pedir vistas do processo para ficar adiando e prorogando a votação. Tempo para ler e se preparar eles tiveram, pois este tema está em pauta desde fevereiro, para eles estudarem.
    Fiquei emocionado com o comentário do papai urso,não dá para ficar insensível a esta verdades que ele escreveu!

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  6. Discurso melhor que esse talvez não pudesse ser dito.

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  7. Diminui um pouco a frustração rotineira a ideia de que a razão possa ser ouvida - porque, sim, trata-se de não se curvar acriticamente ao dogma e ao preconcieto, afirmações cujo valor está em ser pronunciadas e que não devem ser questionadas ou submetidas a verificação.

    Pelo que impõe de sofrimento, perseguição e, claro, morte (real ou em vida), o preconceito contra a união legal homoafetiva equivale à Inquisição e ao poder das igrejas de alguns sobre todos os demais.

    Mas o mais mesquinho e abjeto é exatamente o que "Papai Urso do Interior" descreve: tanto puritanismo parece mesmo ter como um dos alvos finais a tomada do espólio à revelia daqueles que, de fato e em meio a tanta coisa que passaram juntos, conseguiram construir para si.

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  8. Me permita voltar aqui, mas achei esta passagem da pg 46 do documento cujo link. você postou de um raciocínio belo de tão cristalino e brilhante:

    "(...)não se proíbe nada a ninguém
    senão em face de um direito ou de proteção de um interesse de outrem.
    E já vimos que a contraparte específica ou o focado contraponto
    jurídico dos sujeitos homoafetivos
    só podem ser os indivíduos heteroafetivos, e o fato é que a tais indivíduos não assiste o direito à não-equiparação jurídica
    com os primeiros. Visto que sua heteroafetividade em si não os torna superiores em nada. Não os beneficia com a titularidade exclusiva do direito à constituição de uma família. Aqui, o reino é da
    igualdade pura e simples, pois não
    se pode alegar que os heteroafetivos perdem se os homoafetivos ganham."

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  9. Papai Urso do Interior5 de maio de 2011 às 19:10

    Todos pagamos um preço altíssimo todo santo dia, meus amigos foram só três gotinhas num mar imenso chamado brasil (com 'b' minúsculo mesmo). Mas pior que o não-direito à união estável, ainda é mesmo a não-criminalização da homofobia. O Judiciário tem uma dívida incalculável para conosco, a historia sempre se repete...

    Com negros foram cem anos entre abolição e criminalização do racismo (1888-1988), ninguém me pergunte como eles suportaram estes cem anos de agressões idênticas às que sofrem todos os LGBTs deste país (piadinhas evoluindo para agressões, por sua vez evoluindo p/ extermínio, sim extermínio pq mata-se um grupo - o gay - e não um indivíduo aleatório), só sei que eu c/ 35 de vida estou farto, exaurido...

    A agressão a mulheres foi outro capítulo vergonhoso dessa 'pátria': elas atravessaram o milênio sendo espancadas, assassinadas e tidas como 'propriedade' d maridos truculentos e só mais de 500 anos depois (recentemente) ganharam lei Maria da Penha que criminalizava o óbvio ululante...

    Como se vê, a justiça-tartaruga não vai nos fazer nenhum favor seja com a aprovação de união estável ou criminalização da homofobia, mas saldar um débito vergonhoso tb na conta do 'brasil': número 1 no ranking de agressões homofóbicas (maioria seguida de morte), nem conservadores dos EUA e moralistas europeus matam tanto por um motivo torpe e pelo qual não optamos. Não sei vcs mas eu vou me apegar ao fio de fé que me resta e rezar, rezar bastante...

    Como dizia Clodovil Hernandez, 'Se Ele é perfeito em Sua criação e diz que sou feito à Sua imagem e semelhança, então não errou ao me conceber assim, Ele me aceita e me ama'. Lady Gaga reforçou a mesma coisa recentemente em Born This Way. Também fomos feitos para a felicidade ainda que pessoinhas falando em nome d'Ele digam que não. Obrigado às palavras de todos.

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  10. Na torcida todo mundo...
    \o/\o/\o/\o/\o/\o/\o/\o/

    Abraços!!

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  11. Papai Urso do Interior5 de maio de 2011 às 20:00

    Luciano, sugestão: já viu esse vídeo, se vc é molinho como penso, vai chorar ao pensar em todas essas gerações que tentaram ser felizes ao seu modo e à margem da 'sociedade' vigente, tudo a ver com o momento historico q poderemos ter em algumas horas:

    http://www.youtube.com/watch?v=PA5xt7PUGgQ

    e este site com registros fotográficos vintage:

    http://www.gaytwogether.com

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