Dizem que de bolsa de mulher e de cabeça de juiz pode sair qualquer coisa. Então a decisão que o Supremo Tribunal Federal deve dar hoje à ação que pleiteia estender o instituto da união estável aos casais do mesmo sexo continua uma incógnita até o voto do último ministro - mas há razões de sobra para comemorar.
A sessão teve início na tarde de ontem e foi transmitida ao vivo pela internet, com audiência que surpreendeu. Conforme a notícia do evento foi se espalhando via Twitter e via facebook os canais de transmissão foram se multiplicando, e no final do dia até o UOL e o G1 haviam disponibilizado links de transmissão do evento. Quem assistiu se surpreendeu com a maturidade e a profundidade do debate.
Os advogados que falaram pelas instituições que buscam a aprovação das ações fizeram defesas sólidas com base na legislação nacional e internacional e na luta contra o preconceito. Quando chegou a vez de os advogados representantes das instituições contrárias à aprovação da ação (entre elas a Confederação Nacional dos Bispos do Brasil) ocuparem a tribuna, um momento de vergonha alheia: os dois advogados estavam mal preparados, não tinham argumentos, tergiversaram o tempo todo. Um deles começou a falar em crucifixos, Adão e Eva, falou de maconha... uma vergonha imensa transmitida ao vivo. Ponto para nós!
Ao final da noite começou a votação com o Ministro Ayres Brito, relator, dando seu voto. E aí vem outra grande razão para celebrar. O ministro leu seu voto pela aprovação da ação na forma de um documento preparado, de 49 folhas, que é um verdadeiro manifesto pela igualdade de direitos homoafetivos. O documento pode (e deve!!) ser lido na íntegra aqui, e merece ser impresso e emoldurado para ser colocado na parede.
Ayres Brito fala tudo que a igreja não quer ouvir. Que a sexualidade é um prêmio e não um castigo, e que um grupo de pessoas não pode ser punido pelo seu desejo sexual, que não deve ser motivo para vergonha. Nas suas 49 páginas, o texto usa a palavra "sexo" 38 vezes, "preconceito" 17 vezes, "entidade familiar" 12 vezes, e não faz uma única menção sequer a "religião", "bílbia", "Adão", "Eva", ou "Deus". A palavra "deuses" é empregada 2 vezes em sentido geral, como na belíssima passagem "[A sexualiade] corresponde a um ganho, um bônus, um regalo da natureza, e não a uma subtração, um ônus, um peso ou estorvo, menos ainda a uma reprimenda dos deuses em estado de fúria ou de alucinada retaliação perante o gênero humano."
Ao final da página 12 o ministro introduz uma das mais brilhantes definições de preconceito que já li: "Mas é preciso lembrar que o substantivo “preconceito” foi grafado pela nossa Constituição com o sentido prosaico ou dicionarizado que ele porta; ou seja, preconceito é um conceito prévio. Uma formulação conceitual antecipada ou engendrada pela mente humana fechada em si mesma e por isso carente de apoio na realidade. Logo, juízo de valor não autorizado pela realidade, mas imposto a ela. E imposto a ela, realidade, a ferro e fogo de u’a mente voluntarista, ou sectária, ou supersticiosa, ou obscurantista, ou industriada, quando não voluntarista, sectária, supersticiosa, obscurantista e industriada ao mesmo tempo. Espécie de trave no olho da razão e até do sentimento, mas coletivizada o bastante para se fazer de traço cultural de toda uma gente ou população geograficamente situada. O que a torna ainda mais perigosa para a harmonia social e a verdade objetiva das coisas."
Ayres Brito termina seu voto com "Pelo que dou ao art. 1.723 do 49 Código Civil interpretação conforme à Constituição para dele excluir qualquer significado que impeça o reconhecimento da união contínua, pública e duradoura entre pessoas do mesmo sexo como “entidade familiar”, entendida esta como sinônimo perfeito de “família”. Reconhecimento que é de ser feito segundo as mesmas regras e com as mesmas conseqüências da união estável heteroafetiva. É como voto."
Logo após o voto do ministro a sessão foi suspensa devido ao adiantado da hora. Recomeça hoje a partir das 14 horas. E, acreditem, vale a pena ver ao vivo este momento histórico. Onde vai ser a comemoração?
12 comentários:
Assisti ontem como se fosse um jogo de futebol, eu torço pela aprovação, mas temos de ficar atentos aos conservadores. Espero que a luz vença a escuridão.
Abração!
Só lamento ter perdido tantos amigos que se foram sem usufruir desse momento vindouro, sofreram hostilidade de familiares que após suas mortes 'reapareceram' como parentes valorosos para o espólio dos bens, enquanto o companheiro foi considerado só 'uma aventura escandalosa e vulgar', algo a ser escondido, retaliado e apagado. Aos amigos Heitor, Carlos e Júlio, onde estiverem que possam vibrar como estou vibrando agora, torcer pela correção tardia de anos de injustiça, discriminação e exclusão.
@Papai Urso do Interior:
Muito bonito isto que você escreveu.
**
Me arrepiei também, com o Papai Urso. Conheci vários casos assim e ainda continuo vendo, infelizmente.
Luciano, que as boas energias te ouçam. Espero que nenhum ministro do supremo use pedir vistas do processo para ficar adiando e prorogando a votação. Tempo para ler e se preparar eles tiveram, pois este tema está em pauta desde fevereiro, para eles estudarem.
Fiquei emocionado com o comentário do papai urso,não dá para ficar insensível a esta verdades que ele escreveu!
Discurso melhor que esse talvez não pudesse ser dito.
Diminui um pouco a frustração rotineira a ideia de que a razão possa ser ouvida - porque, sim, trata-se de não se curvar acriticamente ao dogma e ao preconcieto, afirmações cujo valor está em ser pronunciadas e que não devem ser questionadas ou submetidas a verificação.
Pelo que impõe de sofrimento, perseguição e, claro, morte (real ou em vida), o preconceito contra a união legal homoafetiva equivale à Inquisição e ao poder das igrejas de alguns sobre todos os demais.
Mas o mais mesquinho e abjeto é exatamente o que "Papai Urso do Interior" descreve: tanto puritanismo parece mesmo ter como um dos alvos finais a tomada do espólio à revelia daqueles que, de fato e em meio a tanta coisa que passaram juntos, conseguiram construir para si.
Me permita voltar aqui, mas achei esta passagem da pg 46 do documento cujo link. você postou de um raciocínio belo de tão cristalino e brilhante:
"(...)não se proíbe nada a ninguém
senão em face de um direito ou de proteção de um interesse de outrem.
E já vimos que a contraparte específica ou o focado contraponto
jurídico dos sujeitos homoafetivos
só podem ser os indivíduos heteroafetivos, e o fato é que a tais indivíduos não assiste o direito à não-equiparação jurídica
com os primeiros. Visto que sua heteroafetividade em si não os torna superiores em nada. Não os beneficia com a titularidade exclusiva do direito à constituição de uma família. Aqui, o reino é da
igualdade pura e simples, pois não
se pode alegar que os heteroafetivos perdem se os homoafetivos ganham."
Todos pagamos um preço altíssimo todo santo dia, meus amigos foram só três gotinhas num mar imenso chamado brasil (com 'b' minúsculo mesmo). Mas pior que o não-direito à união estável, ainda é mesmo a não-criminalização da homofobia. O Judiciário tem uma dívida incalculável para conosco, a historia sempre se repete...
Com negros foram cem anos entre abolição e criminalização do racismo (1888-1988), ninguém me pergunte como eles suportaram estes cem anos de agressões idênticas às que sofrem todos os LGBTs deste país (piadinhas evoluindo para agressões, por sua vez evoluindo p/ extermínio, sim extermínio pq mata-se um grupo - o gay - e não um indivíduo aleatório), só sei que eu c/ 35 de vida estou farto, exaurido...
A agressão a mulheres foi outro capítulo vergonhoso dessa 'pátria': elas atravessaram o milênio sendo espancadas, assassinadas e tidas como 'propriedade' d maridos truculentos e só mais de 500 anos depois (recentemente) ganharam lei Maria da Penha que criminalizava o óbvio ululante...
Como se vê, a justiça-tartaruga não vai nos fazer nenhum favor seja com a aprovação de união estável ou criminalização da homofobia, mas saldar um débito vergonhoso tb na conta do 'brasil': número 1 no ranking de agressões homofóbicas (maioria seguida de morte), nem conservadores dos EUA e moralistas europeus matam tanto por um motivo torpe e pelo qual não optamos. Não sei vcs mas eu vou me apegar ao fio de fé que me resta e rezar, rezar bastante...
Como dizia Clodovil Hernandez, 'Se Ele é perfeito em Sua criação e diz que sou feito à Sua imagem e semelhança, então não errou ao me conceber assim, Ele me aceita e me ama'. Lady Gaga reforçou a mesma coisa recentemente em Born This Way. Também fomos feitos para a felicidade ainda que pessoinhas falando em nome d'Ele digam que não. Obrigado às palavras de todos.
Na torcida todo mundo...
\o/\o/\o/\o/\o/\o/\o/\o/
Abraços!!
Luciano, sugestão: já viu esse vídeo, se vc é molinho como penso, vai chorar ao pensar em todas essas gerações que tentaram ser felizes ao seu modo e à margem da 'sociedade' vigente, tudo a ver com o momento historico q poderemos ter em algumas horas:
http://www.youtube.com/watch?v=PA5xt7PUGgQ
e este site com registros fotográficos vintage:
http://www.gaytwogether.com
Orgulho de ser sergipano!!!
Postar um comentário